Agora a Galiza!
A vitória do sim ontem no referendo ao novo Estatuto da Catalunha foi a última etapa de um longo processo político. Primeiro no parlamento catalão e depois nas instâncias políticas centrais em Madrid que o devolveu aos catalães, o texto está definitivamente aprovado por voto popular e pronto para entrar em vigor. E se é certo que a versão original era mais ambiciosa, também é verdade que a actual situação política em Espanha não permite uma reforma constitucional que levaria a um Estado multinacional de facto. Ainda assim, a Catalunha está mais autónoma, mais senhora de si própria, e a língua catalã, por passar a ser um dever conhecê-la segundo o novo estatuto, dispõe agora de um instrumento legal que acelere a catalanização de sectores onde o castelhano teima em ser o principal ou mesmo o único idioma. Agora, o processo de reforma estatutária segue noutras comunidades autónomas em Espanha, entre elas a Galiza, o outro país europeu cuja língua nativa faz parte da lusofonia e corresponde a uma forma de português além-Minho. Mas para se perceber melhor a coisa, há que recordar um pouco de História.
É sabido que depois de 1143, quando aquilo que fora a Galiza do sul e Condado Portucalense se tornou no reino independente de Portugal, a língua dos dois lados do rio Minho permaneceu a mesma. Da Corunha até à fronteira sul dos territórios cristãos, a faixa ocidental peninsular correspondia a um único bloco cultural. Assim o era ainda no reinado de D. Dinis, quando o monarca substituiu o latim pela "língua vulgar" como idioma oficial do reino e ao longo de todo o período medieval fala-se e escreve-se galaico-português aquém e além Minho. A situação só se começa a alterar na segunda metade do século XV, não porque a língua tenha "naturalmente" evoluído em sentidos opostos dos dois lados da fronteira, mas porque em terras galegas teve lugar aquilo que ficou conhecido como a Doma e Castração do Reino da Galiza: a nobreza galega foi suprimida, as elites foram substituidas e o idioma nativo foi forçado a dar lugar ao castelhano nos círculos de poder e cultura. O galaico-português a norte do Minho perdia a sua posição de língua erudita e subsistia unicamente na oralidade. Já em Portugal, a protecção oficial que vigorava desde o reinado de D. Dinis permitiu o florescimento do português e o desenvolvimento de convenções escritas que na Galiza não puderam ser acompanhadas porque o processo estagnou.
Foi preciso chegar-se ao século XIX para que diversos autores galegos agarrassem na sua língua e lhe tentassem dar de novo uma forma escrita, sendo notória tanto no vocabulário usado, como na ortografia adoptada a influência do castelhano, por natural falta de outro modelo. Na primeira metade do século XX, no entanto, surge claramente na Galiza a consciência de que a linha a seguir para a recuperação da sua língua encontrava-se na aproximação ao português. Este é o período do Partido Galeguista, do primeiro Estatuto Autonómico e de Daniel Castelão,* autor e líder nacionalista galego que disse que "a nossa língua está viva e floresce em Portugal". Desde então até aos dias de hoje, outros como ele têm seguido o mesmo pensamento e a luta pela reintegração do galego no português tem-se desenrolado com avanços e recuos, como a presença de uma delegação galega nos encontros dos acordos ortográficos do Rio de Janeiro em 1986 e de Lisboa em 1990 (ver aqui) ou a vigência na Galiza de uma norma ortográfica colada ao castelhano, respectivamente.
Diante dos sucessivos recuos, da progressiva dialectação do galego pelo castelhano (por força do seu peso nos media e nas instituições) e da perda de galego-falantes, a onda de reformas estatutárias em Espanha surge como uma oportunidade para dar um passo em direcção à completa recuperação da identidade nacional galega e reintegração da Galiza na lusofonia, onde pertence por direito. Neste momento, a norte do Minho, sucedem-se as sessões de consulta parlamentares aos mais variados grupos, associações e instituições galegas sobre o que deve ou não constar do novo estatuto e no passado dia 17, os líderes dos dois partidos que formam a coligação governamental da Galiza - o PSOE e o BNG - assinaram um acordo de critérios referente ao texto a aprovar e a enviar para Madrid. O documento faz menção à nação galega e ao dever de conhecer o galego, à semelhança do caso da Catalunha. Igualmente importante é a proposta de estatuto do BNG, uma vez que refere no último ponto do Artigo 3º a pertença da língua galega ao sistema linguistico galego-português (ver aqui).
Que a lei fundamental galega incluísse uma orientação reintegracionista seria certamente uma pequena, mas importante vitória. A ver vamos se o BNG vai ter força (ou vontade) suficiente para a manter no texto a ser enviado para o Congresso dos Deputados.
* Na imagem, a bandeira da Galiza com o brasão concebido por Daniel Castelão. Ver uma descrição da simbologia aqui.
2 comentários:
Bela explicação sobre a origem da diferença entre as modalidades de galego faladas aquém e além minho.
E não é que este blog continua a ser interessantíssimo??? : Parabéns meu querido e continua o bom trabalho :)
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