Ecce Femina!
Que Madonna é irreverente e gosta de chocar, é certo e sabido. Que os crentes fervorosos e os zelotas religiosos não morrem de amores por ela, também não é coisa que surpreenda. O que já é motivo de algum espanto é o facto de uma moderna democracia europeia (países de leste não necessariamente incluidos) continuar a ter "leis de blasfémia", uma completa aberração legislativa numa Europa que se quer livre e sem submissões do(s) Estado(s) a ditâmes religiosos. É assim que Madonna se arrisca a ser processada na democrática e secular (?) Alemanha por fidelissimos cristãos chocados com o facto da cantora actuar numa cruz e com uma coroa de espinhos em dada parte do espectáculo que entra agora em tourné europeia (ver aqui).
Esta (desnecessária) polémica lembra a bem mais balada confusão por causa das caricaturas de Maomé que, independentemente das inclinações de extrema-direita dos autores ou mesmo do jornal dinamarquês, não deixaram de pôr o dedo na ferida que é a confusão entre o religioso e o civil, confusão essa que dá azo a leis tão ridículas como as de blasfémia que, injustificadamente, limitam a liberdade de expressão e de criação artística. A Alemanha até devia sabê-lo melhor do que ninguém, já que foi no seu território que se deram os acontecimentos catalizadores das guerras de religião que assolaram a Europa por mais de cem anos e que levaram à posterior separação entre Estado e Igreja como forma de fechar as feridas. Aliás, mais do que separar o civil do religioso, o que a laicização pressupõe já desde a Carta sobre a Tolerância de John Locke é a primazia das leis do Estado sobre as da(s) Igreja(s), isto é, o que é proibido segundo as leis civis é proibido aos seguidores de todas as religiões praticadas pelos cidadãos e um decreto religioso não é um decreto civil. Em termos práticos, isto quer dizer que não é por uma fé proibir a representação de um profeta que todos os cidadãos de um país estão sujeitos a essa proibição: ela aplica-se unicamente a uma comunidade religiosa e não tem valor legal na comunidade civil. Do mesmo modo, o facto de uma religião limitar o uso de um determinado símbolo - neste caso o crucifixo - não equivale a que todos os cidadãos estejam sujeitos a esse ditâme.
Limites certamente que os haverá, mas são os mesmos que se aplica ao resto da sociedade: ofensas verbais, difamação, etc. Ora, se nada disto impede um político ou artista, emblemas partidários ou obras de arte de serem caricaturadas ou representadas em situações e/ou contextos que não os convencionais, porque é que havia de impedir que se faça o mesmo com figuras ou símbolos religiosos? A sociedade democrática pressupões debate aberto, critica e sátira livres e as religiões, como parte integrante do espaço público, devem estar sujeitas às mesmas práticas que todos os outros grupos e individuos, sem privilégios e sem discriminações!
Quando Madonna subir ao palco em Dusseldorf, terá a razão própria de um Estado laico e democrático do seu lado, enquanto os zelotas religiosos, que em vez de viverem com as suas crenças mais parece que (sobre)vivem à custa delas, têm mais que se habituar e adquirir hábitos próprios de uma democracia moderna. Já desde o século XVII que se anda a tentar ensinar isto e parece que até a Alemanha tem problemas em perceber o ABC da coisa.
3 comentários:
Concordo globalmente com o Heliocoptero. No entanto, creio que vale a pena separar as provocações de Madonna, tão gratuitas quanto lucrativas, das questões da liberdade de expressão e criação artística. Porque os símbolos religiosos, criados em grande medida pela tradição das artes visuais, podem ser desconstruídos dentro dessa tradição iconográfica (e têm-no sido), ao passo que, no âmbito do "espectáculo de massas", somos confrontados com desconstruções aparentes, nada mais que encenações provocatórios, dominadas pelas estratégias de mercado, neste caso no campo da música pop.
Madonna nestas coisas é certeira. Ela sabe bem que a exploração das actuais tensões religiosas lhe garante polémica, seguida de notoriedade acrescida, seguida de lucro acrescido.
... ou seja, there's no such thing as bad publicity;)
Boa estopada!
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