quinta-feira, março 01, 2007

Cardeal da douta ignorância


Naquela que foi a sua primeira grande entrevista depois do referendo à despenalização do aborto, publicada este mês nas páginas 46 a 51 da revista Visão, D. José Policarpo, cardeal-patriarca de Lisboa, respondeu do seguinte modo a uma questão sobre os casamentos homossexuais:

Não conheço outro modelo de família que não tenha por base um homem e uma mulher... O fenómeno da homossexualidade sempre existiu. Mas a família tem a ver com a complementaridade dos sexos e com a possibilidade de reprodução.

Numa altura em que são vários os exemplos daquilo que o senhor cardeal diz desconhecer - modelos alternativos de família - não conhecer, temo, não é um argumento. É antes uma forma de douta ignorância da parte de quem não sabe (ou finge não saber) e espera que isso tenha qualquer espécie de valor argumentativo. Um pouco mais de honestidade intelectual e D. José Policarpo teria chegado à conclusão de que há muito tempo que casamento e família deixaram de ser sinónimos de reprodução.

Nem é preciso pensar muito para refutar a declarações do senhor cardeal. Basta pensar na possibilidade de duas pessoas de sexo diferente, casadas e perfeitamente saudáveis, adoptarem uma ou mais crianças em vez de procriarem as suas. Não tem nada de errado nem aos olhos da lei, nem aos olhos da generalidade da sociedade. Mas se isto não basta, até porque D. José Policarpo fala na possibilidade de reprodução, então venha uma lista mais extensiva.

O Estado não veda o casamento civil a casais em que um ou ambos os cônjuges sejam estéreis, nem lhes concede o direito de se casarem apenas mediante um comprovativo de tratamento de infertilidade. O Estado também não proibe o casamento civil entre pessoas idosas - para lá da idade de reprodução, portanto - não exige a dissolução de uniões que não produzam prole num determinado período de tempo, nem pede no acto de casar um contrato-promessa que assegure a procriação. Mais interessante ainda, os artigos 1590º e 1622º a 1624º do Código Civil prevêem a possibilidade de casamentos com caractér de urgência, entre outros casos, "quando haja fundado receio de morte próxima de algum dos nubentes." E não consta dos motivos de impedimento de homologação do dito casamento a morte entretanto ocorrida do cônjuge, logo a impossibilidade de ele ou ela ter relações sexuais com o seu ou sua parceiro/a.

O que este último e todos os outros exemplos demonstram é como, aos olhos da lei e da generalidade da sociedade, casamento e família há muito deixaram de ser sinónimo de reprodução. Não existe nenhuma exigência de procriação para que se possa realizar (ou manter) um matrimónio civil, consequentemente, se se veda o casamento a homossexuais isso deve-se não a um qualquer argumento jurídico ou biológico, mas sim a pura e simples homofobia, por muito bem disfarçada que seja. Trata-se do mesmo tipo de discriminação que em tempos impediu a união legal entre pessoas de religiões ou de raças diferentes e que hoje tão ultrajados estariamos se fossem ainda vigentes ou se se decidisse criar casamentos especiais com outro nome para pessoas com cor de pele ou etnias diferentes.

Já agora, o senhor cardeal-patriarca devia viajar mais, aproveitar as idas ao estrangeiro para ler e movimentar-se para lá das paredes das igrejas e tomar contacto com novas realidades de que este vídeo e este caso são apenas duas manifestações. O modelo de família que D. José Policarpo conhece - um e mais nenhum - deixa de ser único assim que se passa a fronteira.

5 comentários:

Anónimo disse...

CLAP CLAP CLAP!!!!!

Absolutamente certeiro, caro amigo!!

Héliocoptero disse...

Suponho, então, que se confirma não haver mecanismo legal pelo qual um casamento urgente não possa ser homologado por motivo da morte do cônjuge cujo estado de saúde originou o caractér de urgência do matrimónio :)

Anónimo disse...

"não possa ser homologado por motivo da morte do cônjuge"

Por motivo da morte, não. Mas por outros motivos, sim :)))))

Héliocoptero disse...

Basta o motivo de morte para demonstrar que o casamento não é realizado com o necessário (ou exclusivo) fim de dar lugar à procriação. Ou sequer de constituir uma família convencional :)

Anónimo disse...

exacto :)