Pedalar ou acomodar
Diz Vital Moreira nesta entrada do Causa Nossa que Helena Roseta merece o prémio de demagogia nas eleições municipais de Lisboa por ela ter dado em aparecer de bicicleta na capital portuguesa. Remata o Professor que pedalar na urbe alfacinha (ou no Porto ou em Coimbra) só se for de "mountain bike", ao que eu pergunto se haverá, de facto, demagogia da parte da arquitecta candidata ou se Vital Moreira fala com o mesmo comodismo e falta de visão tão frequente nas elites nacionais.
Tendo eu estado um ano na Suécia - e digo isto não para me pavonear, mas para poder afirmar que falo por experiência própria - tive a oportunidade de constatar e experimentar em primeira mão o uso diário e frequente da bicicleta como meio de transporte urbano e até interurbano. Nunca mais me esqueço de nas minhas primeiras semanas em Uppsala, altura em que vivia numa aldeia a dez quilómetros da cidade, ter visto um homem de fato e gravata sair de sua casa no campo e seguir de bicicleta para o seu emprego. Como ele vi outros tantos, desde figuras públicas como o líder da Igreja Sueca a académicos de renome, passando por funcionários do Estado, trabalhadores comuns e estudantes, literalmente milhares de pessoas a darem ao pedal para as suas deslocações diárias, fosse a que horas fosse, nem que morassem fora da cidade. Até porque a rede de ciclovias não existia apenas dentro de Uppsala, mas estendia-se às aldeias mais próximas num raio de pelo menos dez quilómetros.
Poder-se-à argumentar que o relevo sueco é propício a isso. Não nego que na Suécia central o terreno não seja em grande parte plano, mas é apenas isso: em grande parte! Tanto a cidade como a paisagem rural em redor têm os seus declives mais acentuados, as suas ruas ou estradas mais inclinadas e muitas delas, ainda assim, com ciclovias. E posso garantir que não é era pela inclinação que as pessoas deixavam de as usar. Em caso de dificuldade, os suecos, sempre práticos, não tinham qualquer problema em desmontar das bicicletas, fazer as subidas mais puxadas a pé e depois prosseguirem novamente a pedal. Na Suécia não se sofre do mesmo comodismo endémico que em Portugal. E tive outra prova disso mesmo quando uma estudante natural do norte sueco - onde o terreno é mais montanhoso - partilhou comigo um detalhe da rotina do seu avô. Ele, vivendo numa casa na encosta de uma colina, tem o mercado mais próximo na parte baixa da localidade, pelo que é seu hábito descer até lá de bicicleta e voltar para casa subindo a pé o que não consegue pedalar. E friso o detalhe de isto ser uma prática de uma pessoa de terceira idade. Olhe-se para os jovens e homens de meia idade portugueses e quantos deles não tremem e reclamam ao mínimo sinal de terreno inclinado...
Para mais, do mesmo modo que em Lisboa se aponta o relevo como impedimento à criação de ciclovias, também na Suécia se podia fazer o mesmo com as condições metereológicas. Afinal, sendo um país nórdico, para quê investir em caminhos para bicicletas se eles vão estar cobertos de neve e gelo metade do ano? Se Vital Moreira morasse no norte da Europa talvez ele argumentasse que só com correntes nas rodas e, no entanto, os suecos lá pedalam até no Inverno. Na neve e no gelo se possível e preciso for. E se se depararem com um percurso traiçoeiro ou perigoso há sempre uma solução: desmonta-se e faz-se a pé a parte mais impraticável. Sem comodismos, uma vez mais.
Em Lisboa, no entanto, nem nas áreas onde o terreno é plano se vislumbra sequer um projecto de ciclovias. Faça-se a pergunta de quantas estão previstas no famigerado Plano de Reabilitação da Baixa-Chiado para se perceber a importância que as elites não dão aos transportes alternativos. Ou não é a Rua Augusta e respectivas paralelas, o Rossio, os Restauradores, a Praça da Figueira, o Martim Moniz e toda a frente ribeirinha terreno plano? E as avenidas 5 de Outubro, da República e de Berna? A Rua da Palma e a Avenida Almirante Reis? O relevo é propício a bicicletas, o espaço até nem falta, mas o modelo de mobilidade urbana é o mesmo: obsoleto, retrógado e irresponsável! Alguns argumentam que não vale a pena investir em ciclovias para umas quantas áreas dispersas. Discordo. Lisboa tem vias de acesso planas em quantidade suficiente além de que nunca se pensou em cruzar o uso da bicicleta com uma boa rede de transportes públicos para ultrapassar as barreiras naturais mais puxadas.
Por exemplo, a Rua da Palma e a Avenida Almirante Reis têm uma inclinação mais leve que a Avenida da Liberdade e vão da Baixa ao Areeiro. Pelo caminho, permitem a ligação por terreno plano à Estefânia e à Praça de Londres por via da Rua Pascoal de Melo e a Avenida de Paris, respectivamente. E uma vez num dos dois sítios têm-se acesso por terreno pouco acidentado ao Técnico, ao Hospital Dona Estefânia, ao Campo Mártires da Pátria, a Picoas e ao Saldanha, às entradas das avenidas 5 de Outubro e da República, à Gulbenkian e à Praça de Espanha. Ao lado do El Corte Inglês, a subida a pé da muito inclinada, mas curta ligação entre as avenidas António Augusto Aguiar e Sidónio Pais dá acesso ao Parque Eduardo VII e Jardim da Amália por via da plana Alameda Cardeal Cerejeira, por sua vez uma rota para as Amoreiras sem ser preciso subir a Joaquim António de Aguiar. E se alguns acham a Avenida da Liberdade demasiado inclinada para subir, todos a acham óptima para descer, pelo que não existe motivo para não ter uma ciclovia para quem queira pedalar num ou em ambos os sentidos.
E se o terreno não facilita a vida, porque não adaptar os eléctricos e os elevadores para o transporte de bicicletas no exterior traseiro e frontal? Um cidadão que estivesse na Baixa e quisesse chegar a Picoas podia pedalar até ao Lavra, subir a encosta no elevador e continuar a pedalar já no Campo Mártires da Pátria. Ou subir dos Restauradores até ao Miradoiro de São Pedro de Alcântara pela Glória sem nunca ter que desistir do uso da bicicleta.
Dir-se-ia que este sistema não permite o acesso a qualquer rua. Mas também de carro se tem o mesmo problema, com vias interditas ao trânsito e outras apenas com um sentido, obrigando o condutor a dar voltas até chegar exactamente onde quer. E se não é por isso que se diz ser impossível circular de automóvel, porque é que há-de impedir a circulação de bicicletas? Dir-se-ia também que não há espaço para a passagem de mais eléctricos na cidade e que eles entopem o trânsito, mas isso sucede precisamente porque se privilegiou o automóvel individual como meio de transporte em Lisboa. Subjugou-se o modelo de mobilidade e a organização do espaço urbano ao uso do carro em vez de se apostar nos transportes colectivos e alternativos a bem de uma cidade mais harmoniosa, mais saudável, mais ecológica e mais agradável de se habitar. Não houve e, a julgar pelas palavras de Vital Moreira, continua a não haver vontade para acabar com o comodismo generalizado, a não haver coragem, sentido de responsabilidade, visão e um pouco de imaginação para ultrapassar as barreiras naturais e constuir uma Lisboa de século XXI.
2 comentários:
Massa Critica - Sexta-feira, 28 de Setembro
Aveiro
18h00
Ponte Praça
Coimbra
18h00
Largo da Portagem
Lisboa
18h00
Marquês de Pombal
Em Lisboa faremos a Massa Crítica dos Executivos, para mostrar que a bicicleta não serve apenas para lazer ou para desporto (obrigando a calção de Lycra, camisola colorida e mala xpto), mas também é um meio de transporte que pode e deve ser usado por qualquer pessoa em qualquer ocasião.
Veste o teu casaco, calças e camisa, saia ou vestido.
Calça o teu sapato de escritório, sandália ou sapato alto.
Vem pedalar.
Porto
18h00
Praça dos Leões
O que é a Massa Crítica?
A Massa Crítica (Critical Mass) é um evento que ocorre tradicionalmente na última sexta-feira do mês em muitas cidades pelo mundo, onde ciclistas, skaters, patinadores e outras pessoas com veículos movidos à propulsão humana, ocupam seu espaço nas ruas. No Brasil e em Portugal, há um movimento ciclista inspirado na Massa Crítica, chamado Bicicletada. Os principais objectivos da Bicicletada são divulgar a bicicleta como um meio de transporte, criar condições favoráveis para o uso deste veículo e tornar mais ecológicos e sustentáveis os sistemas de transporte de pessoas, principalmente no meio urbano.
Mais informações:
www.massacriticapt.net
“Anda de bicicleta todos os dias, festeja uma vez por mês”
Concordo plenamente. Moro perto de Setúbal e digo que é uma cidade com excelentes características para usar bicicleta, só que faltam as ciclovias, apenas por falta de interesse, porque muitos dos passeios para peões são demasiado largos, permitindo em larga medida a construção de ciclovias.
Mas como Setúbal é sempre a última cidade do país, não creio que isso alguma vez venha a acontecer.
Parabéns pelo artigo.
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