terça-feira, janeiro 18, 2005

Linguistas Anónimos

Era um senhor como qualquer outro, alto e de óculos, cabelo ao vento e com o seu belo fato com um cachimbo no bolso. Tinha uma vida perfeitamente normal com a sua mulher, uma daquelas cavalonas de vinte e poucos anos (e rica, ainda por cima!). Mas um dia...um dia ele entrou no bar errado e pediu a coisa errada ao balcão: foi o começo da descida ao inferno (inserir música dramática).

Tudo começou com um convite de uns amigos de faculdade:

- Ah vamos ali e tal beber qualquer coisa e assim e tal...

E ele, que até nem desgostava de uma vida social pela noite dentro, lá aceitou, o ingénuo. Entrou, sentou-se com os antigos colegas, conversou imenso enquanto fumava o seu cachimbo e depois...depois um deles levantou o braço e disse:

- Pssst! Oh, faz favor! Oh! Pssst! Eram cinco verbos no presente do indicativo aqui para esta mesa, se não se importar. E traga mais um no infinitivo e sem gelo aqui para o meu amigo!

O senhor ainda tentou dizer que não, que não podia beber e tal, tinha a mulher à sua espera em casa e ainda tinha que conduzir fulano e cicrano. Mas nada havia a fazer: mal o verbo lhe apareceu à frente ele levantou-o para um brinde e conjugou-o num instante. Depois veio outro e mais outro e mais outro ainda e no final da noite já tinha chegado ao gerúndio de dez verbos diferentes (inserir outra vez música dramática). Uma vez em casa depois de uma condução bastante atribulada por excesso de gramática no sangue (felizmente a polícia não o obrigou a soprar o dicionário!), a tentação tomou-o e ele fechou-se na biblioteca. De portas trancadas para não ser apanhado ele puxou de uma pedras de gelo, uma rodela de limão e um daqueles chapelinhos de papel e naquela mesma noite esvaziou um léxico inteiro (inserir música dramática um pouco mais agressiva)

A partir daí a situação foi de mal a pior, pois passadas mais duas noites naquele bar já pedia complementos directos ou, pior ainda, frases subordinadas completas! Não demorou muito até começar a ter ideias de escrever textos atrás de textos e isso foi o que bastou para destruir a sua vida familiar: meses mais tarde, a sua mulher, rapariga jovem de seios muito salientes e longos cabelos loiros naturais (mas de raízes pintadas de preto...hmm), foi à televisão queixar-se a um daqueles programas de grande interesse nacional e dizer que o seu marido já não lhe ligava nenhuma na cama.

E esta é a triste verdade! Aquele senhor, tão respeitado e erudito, era agora um viciado na invenção de línguas e já não se conseguia ir deitar sem antes escrever um dicionário inteiro. Hoje, coitado, ainda se pode vê-lo algures nas ruas do Chiado, encostado a um canto, a vender incenso e adjetivos substantivados enquanto toca flauta.

(inserir violinos com flauta)


Inspirado numa piada que nasceu algures numa conversa sobre Tolkien na cantina da FCSH, provavelmente em 2000 ou 2001 (já não me lembro). Agradecimentos ao Sérgio e à Patrícia, os co-produtores daquele momento: onde é que já vão os nossos dias da CC do Conselho Pedagógico, pessoal! ( a bela da CCCP, LOL!)

2 comentários:

Lucypher disse...

Muito obrigado por este magnífico post! Deu para me lembrar desses tempos da CCCP :p Um texto deste calibre, para um linguista (repara que 'linguista' não leva acento porque, sendo o Português uma língua que tende para a paroxitonia, o acento tónico recai na penúltima sílaba da palavra, logo, não precisa de acento gráfico - logicamente, há excepções a esta regra) é um verdadeiro regalo. Um abraço amigo!

Héliocoptero disse...

Oh diabo! Corrige-se já o erro ;) Muito obrigado e ainda bem que gostaste :) Abraço