segunda-feira, novembro 13, 2006

Talent de bien faire

Se fosse vivo ele teria hoje seiscentos e doze anos de idade. Como a Natureza não tem por hábito ser assim tão generosa, D. Henrique, Infante de Portugal, cognominado Navegador, morreu a 13 de Novembro de 1460, consta que em Sagres. Era o quinto filho de D. João I e D. Filipa de Lencastre, nascido no Porto a 4 de Março de 1394 e membro da geração dourada que merecidamente recebeu o adjectivo de ínclita, ou seja, ilustre. O seu pai armou-o cavaleiro após a conquista de Ceuta em 1415 e fez dele Duque de Viseu e senhor da Covilhã, títulos a que viria a juntar o de fronteiro-mor de Leiria, grão-mestre da Ordem de Cristo, senhor de Lagos e de Sagres e governador perpétuo do reino do Algarve.

À imensa riqueza conferida por tanto título terreno, Henrique quis dar um fim mais marítimo (e celestial), financiando expedições além-mar a bem da expansão comercial e religiosa. Descobriu-se a Madeira e os Açores, dobrou-se o Cabo Bojador e seguiu-se pela costa africana abaixo, tudo sob as ordens do Infante que nunca terá ele mesmo navegado tão longe, mas que fez o precioso trabalho de mente e de mesa e inaugurou a epopeia que inscreveu Portugal na História e cultura universais. Nem tudo são rosas, no entanto, conhecendo-se da vida de Henrique dois fracassos: a perda das Canárias para Castela e a derrota de Tânger em 1437, onde o seu irmão D. Fernando seria feito refém para não mais voltar a Portugal, já que o país não abandonou Ceuta em troca da sua libertação.

No espírito da tradição cavaleiresca trazida de Inglaterra pela rainha D. Filipa, tanto ela como D. João I e os seus filhos tomaram para si divisas pessoais, motes aos quais se devia subordinar a sua conduta terrena. Henrique escolheu a frase Talent de bien faire. A julgar pelo facto de nunca ter tido filhos, é possível que o Infante achasse que não tinha muito talento para a procriação, ou que o trabalho não ia sair bem feito. A hipótese de ter sido homossexual já foi avançada, até porque o cargo de grão-mestre da Ordem de Cristo não o impedia de ser pai. Mas tirando os tais dois fracassos é justo dizer que viveu conforme a sua divisa, a qual se tornou num mote dos próprios Descobrimentos.

D. Henrique foi sepultado no panteão real da Dinastia de Avis no Mosteiro da Batalha, onde o seu corpo descansa ainda malgrado os saques ao dito templo durante as invasões francesas e no pós-guerra civil. Indubitavelmente um grande português, o seu nome é hoje ostentado por uma ordem honorífica nacional atribuída a quem se distinga no serviço a Portugal e na divulgação da história e cultura portuguesas.

5 comentários:

Anónimo disse...

... uma pinha assim um bocado pró triste: não retirando o mérito ao Infante, pode dizer-se que literalmente ele sacrificou o seu jovem irmão Fernando por razões de Estado, ou talvez seja melhor dizer de expansão da fé cristã, que para o grão-mestre da ordem de Cristo coincidiam. A expedição a Tanger foi feita contra a opinião dominante na corte, incluindo a do rei D. Duarte numa primeira fase, mas tratou-se da forma de obter a bula papal que permitiria toda a expansão ulterior.

D.Fernando, armado cavaleiro a propósito da expedição, era jovem e enfermiço, também tido por homossexual (fez grande parte da viagem de liteira, por causa das crises de hemorróidal que o impediam de cavalgar), até foi nomeado herdeiro testamentário pelo Infante, entregue como refém sem que houvesse a mínima intenção de entregar de facto Ceuta.

Foi objecto de todas as sevícias, como é sabido, até à morte.

Foi literalmente sacrificado por razões tidas como maiores - sacrificar= sacer+ficare= tornar sagrado.

(bom, eu não estava lá para ver, isto é o que li numa biografia exaustiva do Infante escrita por um inglês)

py

Héliocoptero disse...

Triste, mas verdade, py.

D. Henrique foi, de facto, um forte defensor do ataque a Tânger, tal como D. Fernando, mas contra a opinião dos seus irmãos o rei D. Duarte e o Infante D. Pedro. E para lá de questões de fé, havia um motivo estratégico por detrás da expedição: as rotas comerciais que em tempos confluiam para Ceuta haviam sido desviadas, tornando a cidade num peso morto e caro para os cofres do Estado. Conquistar Tânger surgia como uma solução e abandonar Ceuta depois do Infante ter sido feito refém significaria perder o prestígio que a posse da cidade trazia e, quiça, perder também o favor papal.

Sacrificado por razões tidas como maiores, de facto. Mas ainda assim um episódio muito infeliz da nossa História e uma mancha na vida de D. Henrique. Fica por saber como é que D. Fernando se terá sentido, se aceitou de bom grado o seu destino ou não.

Anónimo disse...

... pois, isso também não sei.

Gostava de discutir uma coisa contigo, um dia, agora não dá que já estou a abrir a boca com sono.

Conheces de certeza a história de Alexandre e Hefestion, o batalhão sagrado de Tebas, tantas outras...

Porque terá sido tão diabolizada a homossexualidade depois? Como interpretação de degenerescência, o "contra-natura" de que finalmente a exposição de Oslo veio dar cabo...

Da tradição judaico-cristã? Sem dúvida também, mas o islão copiou-lhe o preceito.

Há aqui alguma coisa que me escapa, ainda hoje não entendo, controlo social sem dúvida, mas para quê? Para chegarmos à pegada ecológica insuportável que vai arrastar isto tudo para um flop colossal?

Resta a citação de O. Wilde: o amor que não ousa dizer o nome

fica bem, hasta

Héliocoptero disse...

O Islão tem raízes comuns com o Judeísmo, as duas são juntamente com o Cristianismo as religiões do Livro, semíticas na sua origem.

Mas se quer falar de homossexualidade desde a antiguidade até ao advento do Islamismo, digo-lhe já que o tema é tudo menos simples (e falo por experiência própria). É assunto para uma ou mais entradas, certamente, mas terá que ficar para uma altura em que eu tenha mais tempos e meios bibliográficos para fazer uma pesquisa com pés e cabeça.

Anónimo disse...

... tudo bem, não quero encomendar-lhe trabalho. Acontece é que acho fascinante o tema: segundo o darwinismo clássico o suporte genético da homossexualidade deveria ter sido há muito erradicado, por selecção natural, porque não tem aparentemente vantagem reproductiva.

No entanto assim não foi, e por exemplo os comportamentos homofóbicos das sociedades humanas têm como contrapartida que muitos homossexuais disfarcem a sua condição, casando e tendo filhos, e assim transmitindo esse suporte genético.

É para mim adquirido que a natureza preserva tudo o que pode, maximizando a variabilidade e a diversidade, porque esse é o esteio da maior resiliência das espécies e das comunidades. Por exemplo, aquela história dos casais machos de flamingos de tomam conta da progenie de um dos parceiros, conforme é relatado no site da exposição de Oslo.